Era noite. O vento soprava de forma suave, quase imperceptível. Apesar de ser noite, ainda fazia um certo calor, comum nesta época final do ano. Uma coruja fazia um voo solitário por cima do castelo. Ao olhar para ela, notou que havia uma tênue luz que vinha da janela no andar de cima. Será que ele poderia estar lá?
Aproximou-se da entrada de forma lenta. Por que essa necessidade de não fazer barulho? Afinal, não queria ser ouvido, falar com ele mais uma vez? Perguntou-se se havia sido a única pessoa a vir aqui nesse tempo em que ele ficou ausente. O silêncio era tão opressor que poderia ouvir seu próprio coração bater. Ansiedade? Pelo quê?
Colocou a mão na porta, empurrando-a. A porta estava aberta. Por que não estava trancada? Mas é claro! Quem é que viria aqui neste solitário pedaço de mundo? Apenas aqueles que gostam de vir aqui frequentam estas regiões ermas e estes são pessoas confiáveis. A existência deste local é desconhecida para a maioria dos seres vivos. E além do mais, não há muitos objetos de valor por aqui. Então, trancar a aporta para quê?
Empurra a porta. Ela se abre, emitindo um ruído característico. Nota que um candelabro está aceso e as velas estão no fim, não durarão mais do que meia hora. Há uma luz que vem dos aposentos superiores. Decide ir até lá todavia algo chama a atenção. Um caderno em cima da mesa, com algo escrito. Pelos traços, parece que foi escrito com uma certa calma, a letra está legível, apesar de não ser muito bonita. Pega do papel, senta-se à mesa e começa a ler.
O mundo. Este lugar onde vivo atualmente. Alguns dizem que nele já vivi em outras épocas, que não é a primeira vez que percorro este planeta. Houve outras épocas, outras sensações, outros nomes. Nada posso dizer a este respeito, já que não há recordações que não sejam desta época atual. Isso também não mais me interessa. Não mais. Tenho outras preocupações mais palpáveis.
Meus
pensamentos não são mais os mesmos, assim como o meu corpo. A mudança é
notável, não é preciso ser deveras perceptivo para percebê-la. Poupo tempo, não
é necessário descrever nada, basta um simples olhar e tudo será apreendido de
imediato. No caso dos pensamentos, já não é tão simples. Não se pode perceber
as vicissitudes da mente em um relance, é necessário uma análise profunda,
contudo uma breve síntese da situação pode ser providenciada. Não deve ser uma
tarefa das mais árduas. Parece que também seria um grande favor para os que
possuem a dúvida em seu interior.
Dizem
que quanto mais distante do mundo alguém se encontra, mais perto de se
encontrar. Pode até ser verdade, mas
essa antítese traz certas consequências. Primeiramente há um certo ostracismo
ideológico da maioria em relação a este ser, este podendo ser involuntário ou
não ( na maior parte das vezes não o é). O problema maior surge quando o ostracizado
não está acostumado com a solidão e dela não sabe tirar proveito, devido a uma
mínima quantia de sabedoria (se é que se pode medi-la) e devido à educação que
é dada a todos, já que se acredita cegamente que alguém só pode ser feliz na
companhia de outrem ou de um grupo. Pode –se citar também a evolução mental,
que parece ser o maior dos pesos, já que não há mais a desculpa do
não-saber. Todas as ações, as falas e
pensamentos que são nocivos são censurados imediatamente. Não se pode falar de
verdade de uma maneira geral (afinal, qual é a Verdade? Não seria mais correto
falar sobre “verdades”?) contudo deve-se concordar que a consciência é
implacável, especialmente quando seu possuidor tem acesso a conhecimentos mais
profundos, quando este começa a ver de forma mais profunda. A dor do erro chega
quase que imediatamente, junto com a censura do ato. Como escapar de tão
ferrenha fiscal?
A
resposta para essa questão? Ela não existe. Sim, não há motivo para tanto
espanto. Garanto que esta não é a primeira vez que uma pergunta ficou sem
resposta e nem será última. Entretanto, existe uma alternativa: não mais errar.
Dessa forma não se sofre mais as críticas da consciência e o sofrimento cessa,
o do criminoso e daqueles que estão próximos a ele, as suas vítimas.
Alguns
recorrem a meios para auxilia-los nesta empreitada. Uns buscam ajuda na religião
(embora vários destes a usem apenas como uma fachada para seus erros), outros
buscam o ensinamento dos grandes mestres da sabedoria e há aqueles que buscam
em ambas as alternativas. Os mais sensatos também observam e estudam seus
próprios atos. Se deve haver uma mudança, por que não começar a se observar
para depois buscar fontes externas?
Porém de que adianta tudo isso se não há um
certo afastamento, se não se fica longe das fontes que causam o sofrimento?
Sartre dizia que o inferno são os outros. Ela não deixou de ter razão, contudo
seria correto por a culpa apenas nos outros?
Uns
poucos preferem se afastar, para assim poder purificar suas mentes, apara que
não haja influências externas. O pensamento oriental diz que é bastante
recomendado praticar uma reflexão solitária a fim de evitar contaminação e/ ou
distração da mente que almeja alcançar o estado superior. Deve-se ratificar que
não se trata de uma verdade absoluta, é apenas mais uma opção entre tantas.
Por isso,
existe esse vazio. Porque a opção do Oriente pareceu mais viável. Todavia é
preciso lembrar-se do estado de impermanência que diz que nada dura para
sempre. Que nada terá a mesma forma e aparência sempre, que tudo destina-se ao
fim. Creio que essa seja uma verdade muito visível, apesar de muitos não
perceberem. Mas basta apenas uma pequena análise e tudo fica compreensível. Nada
escapa do tempo. Este sim é absoluto, muito diferente de nossas crenças,
pensamentos e vaidades. Ele é o verdadeiro imortal...
Tudo isso
para lembrar que nem sempre a morte é o único meio de acabar com o sofrimento.
É possível que um árduo esforço solitário possa cumprir essa tarefa. Ou não.
Depende se a escolha foi correta.
Desta vez
parece que foi.
Após a leitura, fecha o caderno. Realmente era isso mesmo, como havia sido dito antes.Olha para a luz que vem do andar de cima. Levanta-se e decide ir embora. Não é preciso subir as escadas. A mensagem foi compreendida. Sem nenhuma hesitação, sai do castelo e decide que deverá passar um tempo longe daqui. Será que mais um mês de ausência será suficiente para ele?
Enquanto o visitante se distancia, uma figura, cuja identidade é protegida pelas sombras de seus tenebrosos aposentos, observa seus passos da janela superior do castelo. A figura dá um leve sorriso. então, com um repentino vento, as luzes do castelo se apagam e não é mais possível ver nada do seu interior.A única luz que se vê é de uma pálida lua crescente e esta já está a morrer no horizonte oeste...
Nenhum comentário:
Postar um comentário