sábado, 23 de fevereiro de 2013

Um conto


O encontro
"... as ruas se faziam ermas e a lua de sonolenta se escondia no leito de nuvens. Uma sombra de mulher apareceu... Era uma forma branca. A face daquela mulher era como a de uma estátua pálida à lua."
                                                       Álvares de Azevedo, "NOITE NA TAVERNA"
                       

     Era tarde. Muito tarde. O silêncio sepulcral da meia-noite hecatiana era algo deveras impressionante. A única coisa que era capaz de destruir esse vácuo sonoro eram os latidos dos cães que sempre a esta hora anunciavam a passagem daquela que foi a primeira senhora do submundo. De fato, para quebrar com essa monótona e poderosa rotina silenciosa, só mesmo sendo um deus. Uma deslumbrante deusa das trevas.
     Além do silêncio, outra coisa chamava-me a atenção: o ócio que me subjugava. De repente encontrava-me totalmente inativo, tanto física quanto mentalmente. Minha ociosa mente agora é residência para os mais bizarros, devassos e tristes pensamentos. Ideias profanas chegam-me com a mesma velocidade com que um viajante perdido avança em direção à água de um oásis depois de dias vagando sob o sol escaldante e impiedoso do deserto. Sinto que é necessário tomar uma providência urgente para que eu não mais seja vítima dessas malditas imagens que estão a surgir em meus perturbados neurônios.
     Eis então que decido sair. Respirar o ar puro da silente madrugada. Sim, de fato não há solução mais agradável do que essa para sanar estes males que me afligem. Sim! A noite é a melhor das panaceias! Dela sorverei para que os silenciosos e desesperados gritos de meu sombrio interior cessem de uma vez, trazendo-me de volta a paz que há muito não reside em mim.
     Saio então de minha entediante e colorida residência e adentro no monocromatismo do mundo noturno, começando assim minha sombria peregrinação através do reino escuro que só aparece depois que Hélios cruza os céus com sua magnífica carruagem. Um mundo que no momento só possui um habitante: este solitário ser que vos fala neste momento. As ruas estão completamente vazias e há tantas pessoas nelas quanto há ideias sensatas na devassa mente de um sibarita. Posso ouvir perfeitamente minha respiração e meus passos ecoam de forma estrondosa em meus delicados ouvidos. A onipotência noturna me oprime de forma absolutista e esmagadora, fazendo-me sentir pequeno demais. Sinto-me menor ainda quando olho para o alto e deparo-me com as milhares de estrelas que adornam esta cúpula sombria que cobre nosso mundo. Cada estrela dessas é um sol a milhões de e milhões de anos-luz de minha ínfima pessoa. Céus! Como sou pequeno perante todas estas grandezas que a noite me mostra! E para ampliar o complexo de inferioridade que devasta o meu insignificante ser, a lua cheia permanece oculta por trás de algumas nuvens, destacando mais ainda o brilho das estrelas, ampliando ainda mais a incomensurável grandeza deste universo que deslumbra meus olhos, que refletem uma porção da via láctea.
     Prosseguindo com meu solitário caminhar por este mundo de ébano, ouço e vejo várias coisas que somente são percebidas por aqueles que recebem a visita de Hipnos em hora tardia: o voo e os gritos estridentes dos morcegos, o adejar frenético das mariposas em busca de uma luz, o canto rasgado das corujas e esta névoa que surge aos poucos e lentamente vai dominando a paisagem, fazendo-me parecer que estou cercado por várias nuvens e que o Paraíso está cada vez mais próximo. Dulcíssima ilusão...
     Eis que meu caminhar inconscientemente leva-me a uma região deveras erma. Cercado estou agora por várias árvores e em meio a elas surge um pavimentado caminho, uma veia artificial cortando o corpo verdejante de Gaia. Seguindo esta trilha encontro-me defronte um grande portão de ferro. A lua, que escondia-se tímida por trás de véus de nuvens, mostra a sua prateada forma , banhando-me com níveos raios lunares, fazendo-me abrir meus braços, ajoelhar-me e fechar meus olhos, agradecendo por estar tendo meu ímpio corpo mortal sendo purificado por sua gentil e argêntea luz. Fico nessa posição por incontáveis minutos e quando novamente encontro forças para abrir meus olhos novamente, enxergo onde estou de forma nítida: estas estátuas de mármore, mausoléus, lápides... é o cemitério! E o mais estranho é que o outrora fechado portão está aberto! Será que o meu transe foi tão profundo assim a ponto de fazer com que eu não percebesse o mundo, trancasse os meus sentidos a ponto de eu não ouvir quando os portões deste Lieux de pax foram abertos?
      Bom, chego à conclusão de que não adianta permanecer imóvel pensando nisso. Decido levantar-me e levado por um estranho impulso, adentro a morada dos mortos de forma brusca, comparada com os passos lentos que dei para chegar até aqui. Aceito este convite anônimo sem medo algum, apenas guiado pela curiosidade; quero descobrir quem é o anfitrião (se é que de fato existe algum...) que clama pela minha presença neste lugar.
      Uma vez aceito o convite, começo a caminhar calmamente por entre as residências daqueles que já se foram. Sinto-me deslumbrado com as lápides, mausoléus e estátuas, algumas verdadeiras réplicas do modelo clássico de beleza grega. Sinto como se vivenciasse novamente a época do renascimento porém de uma forma sombria e misteriosa. Entretanto, entre essas magníficas obras de arte, uma se destaca pela sua perfeição: parada a um túmulo ornado com uma brônzea estátua de Jesus Cristo, está a deslumbrante figura de uma mulher cuja pele branca lembra o mais limpo dos lençóis de cetim que já vi em minha vida; é como uma rosa branca que acaba de desabrochar, trazendo um pouco mais de beleza para este corrupto mundo de seres maldosos. Seus longos cabelos negros parecem possuir uma ínfima parte do universo, visto que ele brilha como se também estivesse ornado por diversas constelações. Seu vestido negro rendado parece ter sido feito pelas mais hábeis mãos, pois ajusta-se perfeitamente a seu corpo de Afrodite. Seus arredondados e magníficos seios mostram-se de forma altiva, tentando escapar do corselete que embeleza e veste todo o seu tronco.
       Como que saída de um transe, repentinamente ela mexe-se, dando meia volta e fazendo com que seus cabelos ondulem de forma graciosa, acompanhados pela brisa noturna que faz com que um maravilhoso perfume espalhe-se pelo ar, escravizando meu olfato e deixando-me paralisado, como uma vítima indefesa esperando pelo bote definitivo e mortal de seu algoz. Convenço-me então de que não estou diante de uma mulher qualquer e sim de um ser único, que parece manipular o ambiente noturno ao seu redor da maneira que mais lhe apetece.
        Sem olhar para mim, esta dama dirigiu-se a um banco próximo e sentou-se de forma graciosa, como só uma deusa poderia fazer. Permaneceu alguns segundos inerte e então, sem tirar seus olhos do chão, sussurrou numa voz perfeita um doce convite para mim:
     - Sentai aqui comigo, meu ilustre estranho.
        Suas palavras submeteram-me de uma forma tal que não restou-me outra alternativa que não fosse obedecer de imediato. Caminhei até o banco e demonstrando um imenso respeito por aquela magnífica mulher Sussurrei:
       - Com sua licença, milady.
       Não poderia tratar um ser perfeito como este de uma forma menos respeitosa. Pareceu que fui deveras bem sucedido em meu intento pois vi esboçar um leve sorriso em seus lábios carnudos. Então lentamente ela virou-se em minha direção e ergueu lentamente o seu rosto, mostrando-me seus até então misteriosos olhos. Quão deslumbrado não fiquei ao ver aquelas duas límpidas esmeraldas que fitavam-me com curiosidade e ternura! Senti que ela estava a me estudar e despir-me ao mesmo tempo. Senti o ardor do pejo em minha face. Ela notou meu desconforto pois disse:
        - Não fiques nervoso. Estás com medo de mim?
        Não respondi. Ao invés disso, perguntei:
        - O que fazes aqui, ó misteriosa dama?
        - O mesmo que tu, ela respondeu.
        - O mesmo que eu? Que queres com isso dizer?
         Então ela ergueu seu rosto e olhou para a lua cheia. Ficou assim por algum tempo, imóvel, assemelhando-se cada vez mais às estatuas de mármore que adornavam as sepulturas. Então ela tocou em minha trêmula mão. Notou o quão gelada ela estava e o que mais me espantava era que suas mãos pareciam ser mais frias que o gélido mármore dos túmulos! Um pavor tomou conta de meu ser e então perguntei:
      - Quem és tu?
       Uma coruja cantava ao longe.
       Virando-se repentinamente para mim, notei que ela parecia surpresa com minha pergunta. Olhou-me por alguns segundos e perguntou, erguendo uma das sobrancelhas.
     - Quem sou?
     - Sim, isso mesmo! - senti que meus batimentos cardíacos estavam bastante rápidos. - Por acaso és aquela que com o toque leva todos os seres viventes para o sono eterno?
     Ela riu. Um riso tão suave que quase não percebi.
     - Não, não sou serva de Tânatos. Já disse. Estou aqui pelo mesmo motivo que tu.
     - E que motivo seria esse? , indaguei-a, já um pouco impaciente com suas respostas que apenas traziam-me mais dúvidas.
      Então ela fez um gesto com seu braço direito. Um gesto que visava abranger toda a noite, como se de fato ela fosse uma deusa. Não seria ela um avatar de Hécate? Isso estava a enlouquecer-me. Quem de fato é esse deslumbrante ser que fala e porta-se de forma tão majestosa e misteriosa? Percebo agora, neste momento: acima de seu busto ela ostentava um belíssimo Ahnk, a cruz egípcia da imortalidade. Depois de um tempo ela finalmente respondeu a pergunta que lhe fiz:
     - Recebi o chamado da noite, assim como tu. Por isso estou aqui.
      Então era assim! Simples assim! A resposta estava o tempo todo diante de minha pessoa e eu estava tornando tudo mais difícil com minhas suposições fantásticas!
     Súbito, ela ergue-se do banco, olha para mim com um olhar meigo e diz, dando-me sua mão:
      -Vamos?
      - Para aonde?
      -Para onde esta magnífica noite quiser nos levar. Aceitas?
      Como recusar um convite vindo de alguém como ela? Assenti com a cabeça, peguei sua mão ornada com anéis, uma luva de renda com uma enorme rosa negra e levantei-me. Ela conduziu-me pelo cemitério e depois de algum tempo saímos de lá e começamos a desbravar o monocromático mundo noturno que a princípio parecia-nos tão misterioso. E o que era melhor, não havia testemunhas. Não desejava que ninguém mais testemunhasse a minha musa, aquela tenebrosa beleza era só minha e de mais ninguém. Porém, depois de um súbito momento de reflexão vi que estava errado: havia sim muitas testemunhas! Os morcegos, as corujas, e as estrelas que ornavam o magnífico céu noturno. Além dela...
     A lua cheia, que iluminava os nossos caminhos com seus raios prateados, enviados por Selene e que nos conduzia pelos misteriosos caminhos escuros pelos quais nos arriscaríamos a nos aventurar.

Le fin

5 comentários:

  1. Nossa! Este conto é uma viagem, viu? Roberto, lembro de uma manhã em que fui ao Centro Espírita no centro da cidade e lá um "alguém" já viajante do tempo e do espaço, me falou: -" Olha, você! Lembro que já nos encontramos!" E eu fiquie flutuando, cima do chão, medo e um orgulho súbito me encheu a alma. Parabéns, amigo! Um texto envolvente!

    Abraços!

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  2. Muito bom. Parece uma narrativa fantástica a sagrar os campos de um jogo de RPG. ;)

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  3. Massaaaaaaaaaaa!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! vc consegue levar o leitor até onde vc quer. E exatamente hj fui a praia e fiquei viajando no inesplicavel universo. Por exemplo: A lua. ficou horas, e horas brincando de esconde- ewsconde nas nuvens. e tinha horas que ela saia por trás de uma nuvem tão insinuante, quanto uma mulher quando quer se mostrar. Bravo!!!!! amei.

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  4. Olhe comentei como Zé. pois sou analfabeta de pai e mãe dessas novas tecnologias. srsrsrssrsr

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  5. Oi Roberto, já li este conto outro dia, mas ñ comentei nem sei pq. Acho q tinha pressa. O conto é muito bom, como todos q vc escreve. Vc tem uma narrativa muito boa e sofisticação com as palavras. Gosto do mistério, dessa coisa meio q psicológica q vc escreve... beijos!!!

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